Pedro Novaes
Produtor e diretor, sócio da Sertão Filmes e Coordenador-Geral do F+E.
Com a colaboração de Geórgia Costa Araújo
Produtora há 30 anos. Presidente e fundadora da Coração da Selva Transmídia e do selo CineHub. Membro do Conselho Federal da Bravi - Brasil Audiovisual Independente.
F+E / FILME + EMPREENDEDORISMO
Há uma lacuna na formação de produtores audiovisuais no Brasil. Embora ainda tenhamos muito o que avançar nessa área também em outras funções da cadeia produtiva, parece certo dizer que a formação criativa avançou bastante na última década, com ênfase na qualificação dos diretores e dos roteiristas, assim como na formação de caráter mais técnico. Pouca atenção se tem dado, entretanto, à função crucial do produtor.
A despeito de que existam cursos livres, especializações e mestrados profissionalizantes nesta área, uma rápida consulta às grades das graduações em cinema e audiovisual basta para perceber que a ênfase de todos os cursos passa ao largo dessa função.
E, no entanto, o produtor é quem promove o movimento empreendedor necessário à origem e realização do projeto cinematográfico. Afinal, além de arte, trata-se de uma atividade industrial.
Parte dessa desatenção e das dificuldades inerentes à capacitação dos produtores se enraíza no próprio caráter híbrido e multifacetado da função, que engloba áreas que exigem conhecimentos e habilidades muito variados e distintos – desenvolvimento, gestão de projetos, produção de set, administração de propriedade intelectual, entre outros.
A produção audiovisual é uma atividade complexa. Engloba cadeias amplas de fornecedores, processos alongados e de risco para o desenvolvimento de produtos análogos aos da indústria de tecnologia, um gerenciamento de processos em múltiplos níveis e etapas - que demanda conhecimentos e engenharias institucionais muito diversas e difíceis de serem dominadas dentro de uma única empresa -, além de orçamentos que podem atingir cifras gigantescas.
Em específico, dentro desse universo, destaca-se a questão das habilidades e do comportamento empreendedor e especificamente a de como conciliar gestão de negócios e empreendedorismo com processos de criação e produção artística, um desafio muitas vezes complexo que precisa ser resolvido no âmbito de toda empresa produtora.
Como dar conta, nesse sentido, em um mesmo programa de formação, de todos esses conhecimentos e habilidades necessários a um produtor audiovisual?
Para refletir sobre o tema e começar a construir respostas, cabe tentar analisar esses dois aspectos específicos da questão:
1) o desafio inerente a essa amplitude de processos que compõem a produção audiovisual – do desenvolvimento à comercialização – e 2) a questão do comportamento empreendedor e de como ele afeta o trabalho do produtor, em especial do que diz respeito à gestão de processos artístico-criativos.
Não há aqui nenhuma resposta definitiva, apenas mais perguntas e a conclusão de que uma formação mais sólida para produtores audiovisuais precisa justamente dar resposta a essas duas demandas complexas.
A produtora Georgia Araújo, sócia da Coração da Selva, uma das mais reconhecidas produtoras brasileira de cinema e TV, sugere que a produção audiovisual pode, grosso modo, ser dividida em seis grandes áreas, que correspondem a diferentes modelos de negócio e perfis de produtores:
Embora muitas empresas produtoras trabalhem em todas essas áreas, cada uma delas envolve recursos, processos, conhecimentos e habilidades muito diferentes.
O Desenvolvimento de Projetos é o trabalho de concepção e criação de projetos audiovisuais, incluindo seu argumento e roteiro, mas também seu modelo de negócio específico e empacotamento para captação de recursos de produção ou para sua venda.
É portanto uma área com forte componente de gestão de processos artístico-criativos, mas também de marketing e comercialização, envolvendo ainda a busca de estratégias de minimização de um tipo específico de risco.
O produtor de desenvolvimento idealmente é um profissional que compreende a natureza dos processos criativos, tendo já participado deles, que sabe se relacionar com roteiristas e diretores e compreende os riscos e demandas de seus processos de criação. Ele ou ela precisa também ser alguém que sabe analisar e decupar roteiros, imaginando suas consequências financeiras e de produção, de forma a sugerir soluções criativas e direcionar o trabalho de escrita. De outro lado, precisa compreender bem o mercado e enxergar as oportunidades que se desenham, em termos de demanda por formatos e conteúdos novos, identificando boas sinopses ou argumentos ou ainda sugerindo ideias que possam resultar em roteiros interessantes.
Essa produtora precisa compreender ainda os formatos e conteúdos mínimos esperados pelos compradores e financiadores, ajudando a empacotar esses roteiros e conceitos artísticos de forma vendável. Deve conhecer o mercado para entender o perfil desses players e direcionar os produtos para os clientes certos, dominando ainda princípios de marketing para conseguir dar visibilidade a seus projetos e seduzir clientes. Por fim, precisa ter habilidades sociais para construir redes de relacionamento e dominar técnicas de pitching para vender suas propostas.
O financiamento é uma função estreitamente relacionada ao desenvolvimento, mas que pode ser desempenhada de forma independente e também exercida dos dois lados do balcão: há o produtor que capta recursos e o produtor que financia conteúdo diretamente, sobretudo se pensarmos no mercado internacional.
Essa é uma produtora que precisa conhecer o mercado e as fontes de recurso para colocar de pé engenharias financeiras quase sempre complexas, conciliando os interesses, prazos, regras e demandas distintos de vários financiadores.
De uma maneira ou outra, esse é um profissional que deve ter conhecimento de macro e microeconomia, mercado financeiro, de gestão de finanças, direito tributário, contabilidade, das legislações de diferentes países e portanto de direito administrativo. Precisa também saber se relacionar e ter habilidade para vendas. A diversidade de atores que podem financiar projetos audiovisuais – governos, distribuidores, produtores internacionais, canais de TV, plataformas de VOD, investidores independentes, etc. - demanda também um conhecimento amplo do mercado e a capacidade de pensar estratégias muito diferentes conforme a natureza de cada projeto.
Mais uma vez aqui, embora essa área se sobreponha com frequência à proponência, a administração de projetos pode também ser exercida de forma isolada. Envolve organização empresarial, gestão de contratos e fornecedores, lidar com obrigações trabalhistas e sindicatos, a operação financeira do projeto, sua contabilidade, gestão fiscal e auditoria, demandando conhecimento administrativo e empresarial.
É a área da produção que lida com a gestão de produtos audiovisuais prontos e sua venda e licenciamento, o que implica em relacionamento com distribuidores, agentes de venda e canais, planejamento e gestão estratégica de marketing, relação com imprensa, pensar estratégias de festivais e eventos de mercado, trabalhar com o mercado internacional, gerir contratos e deliveries, entre outras obrigações.
Exige conhecimento jurídico de modo geral e especificamente do direito de propriedade intelectual. É uma função comumente exercida na Europa, por exemplo, por profissionais do direito, sob o título de “Legal and Business Affairs”.
É evidente que essas seis áreas se entrelaçam e que, em muitos casos, por exemplo, o produtor proponente será também o responsável pelo financiamento, administrador do projeto e seu produtor físico - mas é fundamental compreender que essa não é uma necessidade inescapável.
As seis áreas, com suas inúmeras demandas, dão conta, na verdade, dessa complexidade inerente à função do produtor e apontam para um dos desafios e dificuldades com que toda empresa produtora e todo profissional de produção eventualmente se deparará: é muito difícil, para uma mesma pessoa e para uma única empresa, reunir as habilidades e a estrutura necessárias para dar conta dessas seis áreas.
Elas evidenciam também um fato quase óbvio, mas ainda não plenamente compreendido e absorvido no mercado brasileiro: ou as empresas se empenham em criar forte estrutura capaz de assimilar todas essas áreas de conhecimento ou a especialização, em uma ou algumas delas, se torna uma necessidade.
Na verdade, essa parece ser uma tendência no mercado. Caminhamos em direção a um ecossistema cada vez mais diverso e especializado, nesse sentido. Exatamente por isso, em qualquer produção internacional vemos tantas logomarcas de produtoras se sucedendo nos créditos dos filmes. Elas se associam e aportam capacidades diferentes justamente para dar conta dessa complexidade industrial da produção.
Visualizar essas seis áreas também torna evidente um dos problemas mais sérios para as pequenas e para as novas produtoras: paradoxalmente, por falta de experiência e credenciais no mercado, elas tendem a abraçar todas essas atividades, o que já é muito difícil mesmo para uma grande produtora.
Do ponto de vista da formação de profissionais, o desafio é evidente: como dar conta dessa ampla gama de campos de conhecimento e habilidades em um mesmo programa ou até mesmo numa diversidade de programas?
Uma das conclusões desse quadro descrito de maneira breve é, portanto, a da necessidade de pensarmos em graduações específicas para a função de produtor e de especializações focadas em uma ou duas dessas subáreas. Outra possibilidade é a de estruturar cursos de graduação com uma grade comum nos primeiros anos, mas que levem a uma escolha de habilitações específicas, incluindo a de produtora ou produtor, no último ano, como é bastante comum em outras áreas. Tudo isso, sem deixar de lado, as questões específicas relacionadas ao empreendedorismo.
O que significa afinal “empreender”? Num sentido genérico, esse verbo pode ser entendido como “realizar”, “construir coisas novas”, “arriscar-se para colocar em prática novas ideias”.
É no campo dos negócios, entretanto, que o empreendedorismo é estudado, já há bastante tempo, como um fenômeno específico, do qual a atividade econômica depende de forma muito direta. Empreender, nesse sentido, é a atividade de criar e sustentar negócios ao longo do tempo.
Há muitas linhas de pesquisa sobre o assunto, com inúmeros desdobramentos práticos, mas quase todas são tributárias dos trabalhos do psicólogo comportamental americano David McClelland. Ele primeiro criou um teoria de motivações, onde estabeleceu três impulsos motivacionais básicos para o comportamento humano: realização, afiliação e poder.
Posteriormente, McClelland se dedicou de forma extensa especificamente ao estudo do comportamento empreendedor, identificando o que chamou de características de comportamento empreendedor (CCEs).
São elas:
Os empreendedores, nesse sentido, são indivíduos que reúnem, de forma mais ou menos pronunciada, essas dez características e os 30 comportamentos que as compõem, aplicando-os cotidianamente na construção e manutenção de seus negócios.
Isso significa, por um lado, que há pessoas menos propensas a empreenderem, por reunirem poucas dessas características ou não apresentarem algumas delas. A boa notícia, por outro lado, é a de que esses comportamentos não são inatos, mas sim aprendidos, e que podem, por isso, ser desenvolvidos e cultivados. Evidentemente, entretanto, o talento para empreender está diretamente relacionado à educação recebida e ao ambiente em que crescemos, o que coloca em vantagem quem desde o berço foi estimulado a desenvolver essas características.
Tanto encarada pelo ponto de vista da criação e gestão de empresas, quanto da concepção e realização de projetos específicos, é evidente a profunda conexão entre produção audiovisual e comportamento empreendedor. Não apenas o produtor (embora sobretudo ele), mas também os próprios artistas nesse campo, se movem por motivações que são próprias do empreendedor e dependem de comportamentos empreendedores para terem sucesso em seus propósitos.
Com frequência, falham justamente por terem algumas dessas características bem desenvolvidas e outras, também essenciais, nem tanto.
A ideia de um filme surge precisamente como identificação de uma oportunidade: essa história ainda não foi contada ou não a narraram de uma forma específica e nova. À ideia, identificada como oportunidade, segue-se a iniciativa, movida por um impulso de realização. A criação artística, nesse sentido, à maneira do empreendedor, comporta também riscos – de fracasso, não reconhecimento e também o de não realização. É um processo com exigência não raro brutal de qualidade e que demanda persistência e comprometimento para contornar obstáculos, com frequência à custa de grandes sacrifícios pessoais. Ele demanda busca de informações e algum nível de planejamento, exige também independência e autoconfiança. Todos comportamentos empreendedores.
Do lado da produção especificamente, onde se situa o aspecto de negócio da atividade audiovisual, a necessidade de desenvolver esses comportamentos se torna ainda mais óbvia. E é nesse campo que se situam muitas das dificuldades dos profissionais da produção – pois, no fim das contas, é muito mais fácil e direto adquirir conhecimentos específicos necessários à função (como gestão de finanças ou planejamento estratégico de marketing, por exemplo) do que desenvolver comportamentos empreendedores, algo que esbarra muitas vezes em barreiras psicológicas profundas.
Se, por um lado, a natureza industrial do setor demanda a estruturação empresarial da atividade, por outro, nossa legislação trabalhista e o ordenamento das políticas de incentivo empurram muitos profissionais para uma “pejotização” sem qualquer planejamento ou consciência desses comportamentos necessários para empreender, o que traz certa precariedade e problemas.
Muitos produtores audiovisuais se tornam empresários mais por necessidade ou impulso do que por vocação, nesse sentido, e à medida em que avançam na carreira começam a se deparar com obstáculos significativos resultantes da falta de capacidade empreendedora.
Outro aspecto peculiar, mas essencial, do setor audiovisual reside no fato de que grande parte dos profissionais que se dedica à produção ingressa na atividade a partir de um impulso e interesse criativo e artístico, e não empresarial.
Esse casamento entre criação artística e atividade empresarial complexa nem sempre é tranquilo e se encontra também na raiz de alguns dos impasses e desafios que cercam a produção audiovisual no Brasil.
É fundamental, nesse sentido, que a formação de produtores audiovisuais incorpore, de um lado, essa capacitação mais tradicional, voltada a conhecimentos de caráter técnico, mas, de outro, que abrace também o desenvolvimento de características de comportamento empreendedor, um tipo de formação que demanda métodos vivenciais e técnicas que promovam mudanças de ordem psicológica.
Adicionalmente, não se pode negar que, embora a criação artística dependa de pelo menos alguns comportamentos de tipo empreendedor, ela, em muitos momentos, entra em conflito com sua própria instrumentação econômica, não apenas por questões ideológicas, mas por razões substantivas.
O impulso artístico tende à autossuficiência – quer ser um fim em si – e resiste muitas vezes a se tornar objeto econômico.
Embora no limite esse seja um debate abstrato e vazio, a questão de fins e meios se coloca como um problema emocional e ético concreto sobretudo para muitos indivíduos de perfil criador, levando a dilemas psicológicos que dificultam a resolução do problema do empreendedorismo no campo da arte.
Ao fim e ao cabo, há uma divergência de finalidades e propósitos de vida. Enquanto para o artista, a criação é um fim em si, para o empreendedor nessa área, ela, em alguma medida, precisa ser vista como meio.
Não obstante, na prática, num mundo onde a arte é objeto de consumo, o próprio êxito da produção artística depende da construção de uma soma positiva entre esses dois elementos. No audiovisual, por sua natureza industrial, essa demanda se coloca de maneira muito mais premente.
Ainda assim, por mais que sua discussão não raro descamba para um debate ideológico abstrato e estéril, essa tensão precisa ser encarada e resolvida no âmbito de todo negócio audiovisual. A atividade de fazer filmes frui da forma mais rica e fértil justamente quando a interação entre criação e negócio atinge altos níveis de sinergia, cuja construção depende sobretudo de produtores capacitados e com consciência dessa mediação como um de suas principais funções.
Essas reflexões apontam para um grande desafio na formação de produtores audiovisuais. É preciso, de um lado, dar conta dessa imensa diversidade de conhecimentos necessários ao desempenho de todas as áreas que compõem o processo de realização de filmes e programas de TV – que vão das técnicas de roteiro ao direito de propriedade intelectual, passando pela contabilidade, pelo marketing e pela gestão de recursos humanos, entre outras.
De outro, há essa demanda, ainda menos reconhecida, relacionada ao cultivo e desenvolvimento de características de comportamento empreendedor. Nesse campo, há evidentemente metodologias bem estruturadas e regularmente aplicadas – como o Empretec, por exemplo -, mas elas não bastam. É preciso criar políticas, fomentar ambientes e estabelecer estímulos que fomentem o comportamento empreendedor no dia a dia.
Nesse sentido, em paralelo ao fomento a projetos pontuais, a política do audiovisual precisa buscar mecanismos para também fortalecer empresas e criar negócios sustentáveis. Unindo os dois lados da formação - técnica e empreendedora -, parece fundamental a criação de incubadoras acopladas aos cursos de graduação em audiovisual.
Como muitas novas produtoras surgem dos egressos desses cursos, elas podem funcionar como plataformas para potencializar esses novos empreendimentos para uma entrada no mercado em um patamar superior de amadurecimento.
O empreendedorismo é, no fim das contas, um traço cultural, o que significa que certas transformações só ocorrerão a partir de políticas e estratégias de longo prazo. Isso não deve entretanto ser uma desculpa para não colocarmos mãos à obra.
APRESENTAÇÃO
"Este projeto foi contemplado pelo Edital de Fomento a Festivais de Cinema do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás 2017"